26 de outubro de 2009

Anjos de quatro patas

Nas ruas, no metrô e até no cinema. A primeira geração de cães-guia paulistanos confere autonomia a cegos.
A advogada Thays Martinez, na Livraria Cultura. Luta para que Bóris, seu labrador, entre em qualquer local público. Nina é a primeira cadela paulistana em treinamento para conduzir um cego. Os outros quinze cães-guia que circulam pela cidade foram importados de países como Estados Unidos e Austrália ou adestrados em outros estados. De porte esguio e olhar atento, a cachorrinha sobressaiu em uma ninhada de oito labradores. Embora não fosse a líder dos irmãos, mamava com vontade e gostava de brincar. Atualmente, aos 10 meses, vive na casa da família Martinez. Não é, contudo, um animal de estimação comum, daqueles que ficam no colo ou soltos no quintal. Já teve lições de obediência, aprendendo que é proibido morder objetos e subir no sofá (apesar de, às vezes, sair da linha e roubar umas meias do armário). Nina acompanha a rotina de trabalho de Rita, secretária de um estaleiro. “Ela fica quietinha embaixo de minha mesa”, conta. Nos fins de semana, vai junto ao supermercado, ao clube e à casa de parentes. “Até mostrar maturidade para ser adestrado, o cachorro aprende a conviver no meio de pessoas”, explica a treinadora Alexandra Fiuza.
Kátia Marques e Genival Santos. Eles namoram e seus cachorros também. A preparação de um cão-guia chega a levar dois anos. Inclui a fase de socialização e o adestramento propriamente dito. Tanto machos quanto fêmeas podem ser condutores, desde que castrados. Dá-se preferência às raças labrador, golden retriever, collie, boxer e pastor alemão. Existe apenas uma escola para treinar tais animais no país. Fica em Brasília e pertence à ONG Integra. Lá há uma espécie de minicidade para simulação de percurso, com os cachorros sendo instruí-dos a contornar buracos, desviar-se de orelhões e atravessar a rua. A Integra teria de doar os animais, como é praxe no mundo inteiro. Mas a entidade também os vende, já que encontra dificuldades para levantar recursos de patrocinadores. “O custo de preparação de um cão-guia é de cerca de 25000 reais. Nós cobramos no máximo 15000 reais do usuário”, diz o instrutor Carlos Alberto Dias, um dos três brasileiros que têm tal especialidade, com diploma internacional. Essa é uma questão polêmica. “Considero antiético favorecer os que podem pagar”, afirma a advogada Thays Martinez, que conquistou autonomia a ponto de morar sozinha após ter ganhado Bóris, seu labrador caramelo. “O cão-guia pode ser comparado ao transplante de córnea.”
Nascida para guiar. Até completar 1 ano, a cadela Nina viverá na casa dos Martinez e terá lições de obediência com a adestradora Alexandra Fiuza (à esq.) Thays é co-fundadora do Instituto de Responsabilidade e Inclusão Social (Iris), com sede na Vila Leopoldina. Sua batalha pela causa dos cegos teve início no dia em que foi impedida de embarcar com o cachorro na estação Marechal Deodoro do metrô, em 2000. De lá para cá, ela conseguiu duas vitórias: a instituição da lei federal que permite a entrada de cães-guia em qualquer local público e a importação de doze deles por meio de uma parceria da Iris com o grupo Leader Dogs for the Blind, de Michigan, nos Estados Unidos. “É apenas o começo, pois há 2000 pessoas na lista de espera”, diz ela, que está empenhada na tentativa de criar cães-guia em São Paulo. Como se nota pela repetição do sobrenome Martinez, Thays envolveu o irmão, a cunhada e os sobrinhos em seu projeto. São eles os zelosos criadores da filhote Nina.
Na minúscula comunidade dos usuários de cães-guia, há um jovem casal cujos cachorros também “namoram”, segundo eles. O advogado Genival Santos e a bancária Kátia Marques são os donos de Laila e Sam, respectivamente. “Quando saímos para passear, fazemos muito sucesso”, afirma ele. “Mas eu não gosto muito que as pessoas venham brincar com os cães”, reclama ela. O motivo é simples: o cachorro se desconcentra. E sempre há uma lixeira ou uma lanchonete por perto para atiçar sua fome. Quando Santos e Kátia começaram o namoro, há pouco mais de um ano, eles ainda usavam bengala. O instrumento às vezes os deixava na mão. Santos conta que já marcou encontro com Kátia numa estação de metrô e não conseguiu encontrá-la. “No corre-corre, ninguém ajudava e o celular não pegava.” Agora está mais fácil, pois Sam corre em direção a Laila e os casais partem contentes. Gostam de ir ao cinema (dublado) e já foram ao zoológico. Livres da bengala, eles não têm mais topado com orelhões e outros obstáculos no meio do caminho. “Até pensei em comprar um capacete”, brinca Santos.
Fonte: Veja São Paulo
Imagens de Fernando Moraes

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